quarta-feira, 20 de julho de 2011

Isto Não É Um Poema

Então decidi escrever um poema. Pousei o charro no cinzeiro, permitindo aos meus olhos planearem a contemplação do universo crepuscular que seria o meu quarto. Não era uma cedência total ao sentido, mas uma bela permuta: em troca sonhei entender meia dúzia de explicações para a génese do mundo, todas elas igual e fantasticamente plausíveis. No mercado dos sentidos, saber como tudo começou é um produto raro e valioso, e eu consegui-o por uma pechincha.

À luz do que soube durante aquele bocadito revelador, a metáfora do ovo e da galinha não faz sentido nenhum, porquanto se prende com uma questão temporal, quando não há antes nem depois, há um agora infinito que não depende de nós, nunca dependeu nem nunca dependerá, mas lá está, nunca também não faz sentido, como também não faz sentido conjugar verbos, pretéritos, futuros e condicionais, um mais-que-perfeito, não vá o diabo tecê-las, mas conjugar o quê quando tudo é infinitivo, tudo é gerúndio, não houve início nem haverá fim porque o universo é um verbo eterno, uma acção perpétua, e pronto, pelo que deu para perceber é isto. E, sim, foi o que me ocorreu naquela altura luminosa, foi a metáfora da galinha e do ovo.

Mas no preciso momento em que acabava de me aborrecer com isto, o que não dissera e o que dissera a mais reuniram-se num estranho círculo de lava e de sangue: agora sei que a lava representava o irrevelado, a dor potencial e a omissão; o sangue, as solenes vitórias e as consagradíssimas derrotas. O meu juízo isolado levara-me a crer que se tratava também de uma aliança de funestos arrependimentos de estirpes perdidas nos sulcos do tempo, rasgando pretéritos no predicado da vida, forçando sentido nas palavras que aqui deixo cair, sim, largo-as aqui, que escrever também é esquecer as coisas no papel, digo que a vida tem predicado, digo que arrependimentos formam alianças, do imperfeito ao mais-que-perfeito, sem ponto final, digo uns símbolos estranhos, um vigor de gerúndio, trocando os atributos às coisas, fugindo ao assunto.

E pronto, foi esse oceano de opções e esta maldita liberdade de escolha que me levaram a esta insana decisão. Foi o meu ser perdido no vil deslumbre do exterior que se deixou abraçar pelos tentáculos das geometrias insondáveis da possibilidade. Não. Isto não é um poema. Nem fui eu que o decidi.

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